Escravidão digital no Camboja: como centros de golpes online se tornaram fábricas de tortura, tráfico e fraude internacional

 

Por Libia López INEWSR

Uma nova investigação da Anistia Internacional trouxe à tona um cenário sombrio no Sudeste Asiático: milhares de pessoas estão sendo aliciadas, traficadas e forçadas a trabalhar em centros clandestinos no Camboja, onde são obrigadas a aplicar golpes digitais em escala internacional. O relatório denuncia não apenas o funcionamento desses esquemas, mas também o envolvimento ou a omissão de autoridades locais que permitiram o crescimento desse mercado criminoso.

A promessa de um futuro melhor — e a armadilha

Tudo começa com falsas promessas. Jovens e adultos de diferentes países, como Tailândia, Vietnã, Índia, Bangladesh e até algumas nações africanas, são atraídos pelas redes sociais com ofertas de empregos de alta remuneração e boas condições de vida. Os anúncios mostram imagens de escritórios modernos e hotéis com piscina, com promessas de salários acima da média e jornadas de trabalho reduzidas.

No entanto, ao chegarem ao Camboja, a realidade é brutalmente diferente. As vítimas têm seus documentos confiscados, são levadas a complexos cercados por muros altos, vigiados com câmeras e guardas armados, e são forçadas a participar de operações fraudulentas. Lá dentro, vivem sob vigilância constante, sem possibilidade de contato com o mundo exterior, e são submetidas a ameaças, castigos físicos, tortura psicológica e abusos.

A indústria do golpe digital

Os chamados “centros de fraude” ou “fábricas de golpe” operam como verdadeiras empresas criminosas. Os trabalhadores forçados são treinados para enganar pessoas online por meio de redes sociais, aplicativos de mensagens e plataformas de investimentos. As fraudes mais comuns envolvem relacionamentos falsos e investimentos fraudulentos em criptomoedas.

Um dos esquemas mais utilizados é conhecido como "abate de porco", que consiste em conquistar emocionalmente a vítima, geralmente fingindo um relacionamento amoroso à distância. Depois de ganhar a confiança da pessoa, os golpistas a convencem a investir dinheiro em uma plataforma falsa. Quando a vítima tenta sacar os lucros, descobre que foi enganada — e já é tarde demais.

Os trabalhadores desses centros são forçados a atingir metas diárias de fraude. Aqueles que falham podem sofrer punições físicas, como choques elétricos, espancamentos ou serem privados de comida e sono. Muitos têm suas famílias ameaçadas, e alguns são vendidos de um centro para outro, como se fossem propriedade.

Um sistema sustentado pela impunidade

Segundo a investigação, o governo cambojano tem sido cúmplice ou omisso diante dessa situação. Apesar de haver forças-tarefa supostamente encarregadas de combater o tráfico humano e os golpes online, os centros continuam operando sem interrupções. Em alguns casos, mesmo após ações policiais, os complexos voltam a funcionar dias depois.

Além disso, jornalistas e ativistas que denunciam esses abusos enfrentam perseguições, processos judiciais e, em alguns casos, prisão. Há denúncias de que autoridades locais recebem propinas para fechar os olhos ou até protegem diretamente os operadores desses centros.

Esse ambiente de impunidade permitiu que o Camboja se tornasse um polo internacional de golpes digitais, operando com conexões em toda a Ásia e alcançando vítimas em países como Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e Brasil.

Vítimas esquecidas

O relatório da Anistia Internacional entrevistou dezenas de sobreviventes de oito diferentes nacionalidades, entre elas nove menores de idade. Muitos relataram que, ao tentar fugir ou denunciar sua situação às autoridades locais, foram levados para centros de detenção e tratados como criminosos, e não como vítimas de tráfico humano.

Há também registros de mortes em circunstâncias suspeitas dentro desses centros. Alguns sobreviventes afirmam ter presenciado espancamentos até a morte, além de suicídios de pessoas que não aguentaram a pressão psicológica.

Um dos casos mais marcantes é o de um adolescente tailandês que, após meses de trabalho forçado, decidiu pular do oitavo andar de um prédio em um ato desesperado de fuga. Sobreviveu, mas ficou com sequelas permanentes.

Dimensão econômica e política

Estima-se que essa indústria criminosa movimente bilhões de dólares todos os anos. No Camboja, segundo analistas internacionais, os lucros oriundos desses golpes podem representar uma fração significativa do PIB nacional, sendo distribuídos por redes que incluem empresários, políticos e membros de forças de segurança.

Embora o governo cambojano tenha tentado demonstrar ação — como no caso da suspensão da licença de uma empresa financeira suspeita de facilitar transações dos golpistas — essas medidas têm sido vistas como superficiais e insuficientes para desmontar a estrutura criminosa.

A gravidade do problema é tanta que governos de países vizinhos, como a Tailândia, têm implementado barreiras migratórias na tentativa de impedir que seus cidadãos sejam levados ao Camboja para trabalhar nesses centros. Organismos internacionais também vêm aumentando a pressão, exigindo respostas concretas e punição aos responsáveis.

Um ciclo difícil de romper

O que torna essa situação ainda mais complexa é o perfil das vítimas: em sua maioria, são jovens desempregados, com baixa escolaridade e em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Ou seja, são pessoas facilmente manipuláveis e com poucas opções de resistência.

Além disso, muitas vezes, os próprios familiares são enganados. Pensando estar ajudando os filhos a alcançar melhores condições de vida, apoiam sua ida ao exterior — sem saber que estão sendo entregues a redes de exploração e violência.

Enquanto isso, os criminosos continuam sofisticando suas táticas, usando tecnologia de ponta, inteligência artificial, perfis falsos bem elaborados e até vozes geradas por computador para aplicar os golpes.

Caminhos possíveis

Especialistas em direitos humanos e organizações internacionais apontam que só haverá mudança real se houver:

  • Investigação rigorosa e independente das redes criminosas que operam dentro e fora do Camboja;
  • Prisão e julgamento de empresários e autoridades cúmplices;
  • Repatriação e reintegração das vítimas, com apoio psicológico, social e legal;
  • Adoção de políticas migratórias mais protetivas para evitar o aliciamento de jovens em situação de risco;
  • Cooperação internacional entre governos e plataformas digitais para rastrear transações e desativar perfis utilizados em golpes.


O que está acontecendo no Camboja não é apenas um problema regional, mas uma crise de proporções globais que envolve tráfico humano, crimes digitais, corrupção e exploração de vulneráveis. Os centros de fraude online funcionam como verdadeiras prisões modernas, onde milhares de pessoas são reduzidas à condição de escravas digitais.

O silêncio e a omissão diante dessas práticas são cúmplices da barbárie. Romper esse ciclo exige coragem política, mobilização internacional e, sobretudo, o reconhecimento de que as vítimas precisam ser protegidas, não criminalizadas. A cada dia de inação, novas vidas são destruídas, e o crime se fortalece — nas sombras de um mundo cada vez mais conectado.

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Libia López Jornalismo-Repórter News working in Brasil

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